O mal invisível da falta de saneamento expõe milhões a doenças letais

Entrevista: Rosiney Bigattão

Doenças como leptospirose, esquistossomose e gastroenterites graves continuam fazendo vítimas no Brasil em diversas regiões do país. A principal causa é a contaminação da água por fezes e urina de animais, associada à ausência de coleta e tratamento de esgoto.

Cidades ainda vivem com parte da população sem acesso à água potável. Em muitos lares, a única opção é consumir água de poço ou de fontes duvidosas, sem qualquer garantia de qualidade. Os impactos recaem principalmente sobre populações mais pobres, expostas diariamente a riscos invisíveis, mas letais.

Apesar da queda no número de casos graves de algumas doenças, como a esquistossomose, ainda há registros frequentes em áreas endêmicas em regiões do Nordeste. Já outras enfermidades, como a leptospirose, aumentam durante os períodos de chuvas e alagamentos, principalmente em grandes cidades como São Paulo.

Para entender como a falta de saneamento se conecta diretamente à saúde pública, o Saneamento Salva conversou com o Dr. Sinval Pinto Brandão Filho, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na entrevista, ele explica como a ausência de políticas estruturantes perpetua doenças evitáveis e destaca o papel da educação sanitária e da água tratada na prevenção. Confira a entrevista completa.

Qual é a importância do saneamento para a saúde da população? 

O saneamento é fundamental, crucial para oferecer melhores condições à população, evitando o contato com diversos patógenos transmitidos pela água. Temos desde parasitas, como o Schistosoma, responsável pela esquistossomose, até inúmeras bactérias e vírus que provocam gastroenterites severas. São doenças graves que persistem no país devido às condições precárias de saneamento.

Esse é um problema importante de saúde pública na região Nordeste e em algumas áreas da região Sudeste, devido à ausência ou à precariedade do saneamento. Nessas localidades, as pessoas acabam eliminando seus dejetos na água que de certa forma acaba contaminada. Esse paciente assintomático, ou seja, infectado pelo Schistosoma, elimina fezes em locais inapropriados e contribui para a contaminação de outras pessoas. O ciclo vai se mantendo infinitamente. 

O fator principal é interrompê-lo,  — seja por meio de hábitos educativos, para que essas pessoas não eliminem fezes em locais inadequados, seja por melhorias estruturais. As condições precárias das moradias, sem instalações sanitárias, favorecem a eliminação de dejetos em canais e até mesmo em praias.

Em Porto de Galinhas, por exemplo, colegas da Fiocruz identificaram o Schistosoma em situação de infecção ativa em áreas próximas ao município. Enquanto não se propiciar que os municípios tenham o saneamento básico, de eliminação de dejetos e acesso à água potável — que ainda é um problema que muitas dessas populações ainda não têm —, não vamos conseguir superar essas doenças.

Ainda ocorrem mortes no Brasil causadas por doenças de veiculação hídrica?

Ainda temos mortalidade dessas diferentes formas causadas por diferentes patógenos, mas as gastroenterites são as predominantes nos casos graves que levam, hoje, à mortalidade.

Existem muitas áreas endêmicas onde a esquistossomose ainda está presente, embora tenha havido uma redução significativa nos casos mais graves ao longo dos últimos 50 anos. Nos anos 1960 e 1970, a doença apresentava alta mortalidade. Muita gente morreu de esquistossomose no passado, o que motivou ações de combate nas áreas endêmicas, realizadas pela antiga Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública). 

Essas ações incluíam o controle dos hospedeiros intermediários, como os caramujos. Porém, essas abordagens são paliativas, porque o buraco é mais embaixo: é o saneamento precário.  Portanto, mesmo com a redução dos casos graves nas últimas décadas, a doença ainda persiste.

Os casos que levam à mortalidade ocorrem porque a pessoa é exposta regularmente aos agentes contaminantes?

Sim, ela se infecta quase diariamente. Evidentemente, existem períodos do ano em que há mais incidência de uns do que de outros. Um exemplo é a leptospirose, causada por uma bactéria presente na urina do rato. Ela está associada à transmissão hídrica, mas não está diretamente relacionada à falta de instalações sanitárias. 

Pode haver contaminação porque os roedores, que são os hospedeiros, eliminam a leptospira por meio da urina e ela consegue sobreviver na água da chuva. Então, o risco aumenta com os alagamentos. Nesses casos, a população residente vai se expor à leptospira e, consequentemente, vai se infectar com a leptospirose. Essa doença leva ao óbito quando está grave.

O que as pessoas podem fazer se não têm acesso ao saneamento?

É preciso usar antigas metodologias, como ferver a água que não é tratada. Aliás, essa é a única forma segura. O calor elimina as bactérias, vírus e parasitas. Quando a água atinge mais de 100 graus durante a fervura, propicia a eliminação dos patógenos. Por isso, em situações em que as pessoas não têm a certeza de receber água potável – como no uso de água de poço ou coletada de fontes alternativas-, o mais seguro é fervê-la antes do consumo.

A água deve ser fervida também para tomar banho e cozinhar, porque se não tiver essa esterilidade em relação aos patógenos, eles permanecem e contaminam as hortaliças e os alimentos.  Se o alimento não for para o fogo, a pessoa com certeza vai se contaminar.

Como tem sido sua trajetória em relação ao saneamento e doenças hídricas?

Desde o início da minha carreira, nos anos 80, tenho pesquisado as doenças parasitárias e, entre elas, as de veiculação hídrica. Esse é, inclusive, um dos focos tradicionais dos grupos de pesquisa da Fiocruz em Pernambuco. Também há grupos importantes nas áreas de bacteriologia e microbiologia, que, por exemplo, estudaram o cólera por muitos anos no Estado. São doenças que representam um grande problema de saúde pública. E uma das prioridades da Fiocruz sempre foi estudar essas grandes endemias decorrentes da situação de iniquidades sociais. 

Muitas delas são propiciadas e transmitidas por vetores, como doença de chagas, esquistossomose e leishmaniose. As instalações de vida sempre propiciam a incidência dessas doenças. Então, eu sempre fui um curioso e um apaixonado por estudar. A linha predominante na minha trajetória foi a leishmaniose — tanto tegumentar quanto a cutânea, e também a leishmaniose visceral, que é uma doença grave e que ainda tem uma mortalidade importante no Brasil. 

A leishmaniose visceral incide também na população de cães. Em áreas endêmicas, os cães que convivem em ambiente doméstico morrem pela doença, transmitem e levam a um maior risco de transmissão. O cão é o reservatório dessa doença, que não é hídrica, mas que está no rol das grandes endemias e das doenças parasitárias. Ela é transmitida por um vetor: o mosquito chamado flebotomíneo, que não precisa de água para se multiplicar; ele precisa só de condições de umidade e abrigos no solo, ao contrário dos mosquitos que precisam de água para se multiplicar.

Comprovadamente, as condições sanitárias propiciam a transmissão dessas doenças? 

As condições sanitárias precárias favorecem principalmente a população de mosquitos, que são vetores de arboviroses como dengue e chikungunya. Tipicamente, quando você não tem água tratada, a água da chuva, por exemplo, é acumulada em recipientes, então a possibilidade de multiplicar as populações de mosquitos é alta. Isso ocorre porque os reservatórios, muitas vezes, não são tampados corretamente e cuidadosamente. Isso propicia a proliferação de mosquitos, porque as fêmeas vão botar seus ovos nessa água e, rapidamente, eles vão se transformar em novos adultos que vão aumentar a transmissão de vírus, de arbovírus. Esse é um exemplo categórico de como a precariedade do saneamento favorece a transmissão de doenças infecciosas por mosquitos.

Como é para o senhor, depois de mais de 40 anos dedicados a esse tipo de estudo ainda saber que pessoas morrem por causas evitáveis? 

É muito triste e desconfortável. A gente sabe que o Brasil já poderia ter superado essa questão. Estamos localizados em região tropical e as mudanças climáticas agora irão afetar ainda mais. Mas esse quadro da questão sanitária já teria sido mitigado se estivéssemos em um patamar mais avançado. A gente convive com situações seculares de precariedade. Isso poderia ter avançado. Evidentemente, precisa de investimentos.

Os políticos gostam muito de fazer pontes, viadutos, mas a parte de investimento sanitário, que é a instalação — tudo no subsolo — infelizmente, não é uma prioridade. No Brasil, é uma questão de educação política também, de prioridade, e o país só vai conseguir superar muito desse quadro de desigualdade e de iniquidade se investir em saneamento.

O Novo Marco Legal do Saneamento propiciou ampliar as ações de saneamento para além do poder público. Só vamos superar a situação daqui a alguns anos, quando o país tiver mais cobertura de saneamento básico. Isso é fundamental, evidentemente é preciso também investir em educação, em campanhas para mudar os hábitos da população, evitando práticas que favoreçam a transmissão desses patógenos. Mas só o fato de a população ter a devida instalação sanitária para eliminação de fezes e urina já representa um grande avanço. Isso é um dever básico para melhorar a saúde pública e o saneamento.

Evidentemente, precisa ser fortemente lembrado também pelas autoridades das cidades que a questão do crescimento desordenado também está atrelada à precariedade do saneamento. As condições de moradia são fundamentais para a gente superar essas doenças propiciadas por esse quadro de precariedade.

O que o motiva a continuar pesquisando ainda?

Vejo como prioridade. Muitas dessas doenças ainda precisam avançar no diagnóstico, na melhor compreensão ecológica, na pressão ecológica com a mudança climática agora, por exemplo, que favorece a incidência da transmissão. É um quadro bastante instigante, melhor compreender os mecanismos de transmissão que vão se ampliando para novos hospedeiros, novas áreas endêmicas e novos patógenos, que a cada momento estão se desencadeando. 

Há dois anos tivemos um surto que continua com a incidência importante de Oropouche, que é um arbovírus transmitido por maruim, que é menor que um mosquito. Esse vírus causa um quadro infeccioso muito parecido com o da Zika, e que está agora com evidências de estar associado com a malformação congênita. E precisamos de mais estudos sobre isso. É outro problema de saúde pública. Esses estudos sobre doenças tropicais são instigantes e cada vez mais novos patógenos na região tropical proporcionam novos desafios. Então, é apaixonante trabalhar para o enfrentamento.

O país precisa estar melhor preparado para lidar com essas doenças e outras que vão vir. Tivemos a COVID. Ninguém esperava que o Sars-CoV aparecesse da forma como foi nessa pandemia tão importante que desafiou a humanidade e tivemos de fazer esse enfrentamento. Esse é o contexto global de saúde, mas muitos desses patógenos são propiciados por essas mudanças de crescimento desordenado, áreas que favorecem a transmissão e saúde animal se misturando com a precariedade da humana, sendo que os patógenos dos animais acabam sendo transmitidos para humanos. Está tudo misturado: mudança climática, pressão ecológica e crescimento desordenado da população, propiciando o desenvolvimento de novos patógenos.

Além das descobertas científicas, o senhor também divulga o conhecimento, organizando congressos e eventos. O que o torna realizado nesta contribuição ao longo de tantos anos dedicados à pesquisa?

É um orgulho enorme poder ter contribuído com vários conhecimentos em relação à leishmaniose e também sobre outras doenças endêmicas, como as arboviroses. É um orgulho enorme ter propiciado novos conhecimentos sobre a epidemiologia dessas doenças, com novos dados sobre os vetores, os reservatórios, o diagnóstico e a diversidade dos parasitas. É empolgante ver o quanto podemos contribuir para esses novos entendimentos. E, na organização dos eventos, poder propiciar o amplo debate sobre o que diversos grupos, no país e no exterior, estão desenvolvendo para melhor compreensão desses patógenos, dos seus vetores e da expressão da doença em diferentes regiões endêmicas do Brasil, das Américas e do mundo tropical do nosso planeta.

Me sinto realizado quando percebo mudanças. Para a população, é uma maravilha saber que aquela água é potável, dá uma tranquilidade saber que poderão ter uma vida saudável. O outro lado é difícil — no começo da pandemia, por exemplo, havia muita informação de que o vírus também estava associado à transmissão por contato. As orientações diziam para lavar as mãos, mas muitas pessoas não tinham água. E quando você chega a uma situação dessas, num quadro endêmico e de pandemia? É exatamente aí que se percebe a importância. As pessoas ficam mais tranquilas quando têm água potável em casa, para tomar banho, para beber. Uma instalação adequada para os dejetos também evita a contaminação. Dessa forma, as pessoas se sentem confortadas, valorizadas como cidadãs. E é isso que todos devemos buscar e lembrar sempre nesses debates.

Doutor Sinval, para encerrarmos, o saneamento salva mesmo? 

Com certeza. Um bom saneamento, esgoto tratado e água potável são tão importantes quanto a comida. É preciso que as pessoas tenham água de boa qualidade para preparar seus alimentos, para que tenham, em sua subsistência, uma qualidade de vida que propicie uma melhor condição de saúde, evitando várias dessas doenças. Saneamento é saúde.

Sinval Pinto Brandão Filho

Sobre o autor

Sinval Pinto Brandão Filho, 65 anos, é natural de Campina Grande (PB). Graduado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), concluiu doutorado em Biologia da Relação Patógeno-Hospedeiro pela Universidade de São Paulo (USP) em 2001. É pesquisador titular do Instituto Aggeu Magalhães (IAM/Fiocruz), atuando nas áreas de parasitologia e saúde pública, com foco na ecoepidemiologia de doenças parasitárias.

Pesquisador do CNPq, coordena o Laboratório de Referência em Leishmanioses do IAM e preside atualmente a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Suas linhas de pesquisa incluem ecoepidemiologia da leishmaniose tegumentar e visceral, além da biologia de hospedeiros reservatórios e flebotomíneos vetores. Ao longo da carreira, organizou e presidiu eventos científicos de grande impacto.