Ausência de banheiro em casa expõe desigualdades no saneamento

“Meu banheirinho era um cercado de lona, no quintal, sem cobertura nenhuma, e eu estava preocupada com a chegada do inverno por causa das crianças. Mas Deus é tão bom que enviou anjos que fizeram a construção do banheiro. Era um sonho distante, porque o dinheiro que eu ganho é para comer e não para construir.”

O relato de Daniele Mara da Silva, moradora da comunidade Lindalma Soares, no Piauí, parece ser coisa de um passado distante, mas o Brasil ainda tem milhões de pessoas que enfrentam situações semelhantes a essa realidade. 

Segundo o Censo (2022), são 4,5 milhões de brasileiros vivendo em 1,37 milhão de casas sem banheiro no país. 

Um número que não cabe na imaginação da maioria das pessoas, mas que em 2025 traduz a realidade de quem precisa usar matas, terrenos baldios, rios ou sacolas plásticas para fazer suas necessidades fisiológicas. 

Em 2024, a rotina de Daniele e das três filhas mudou. A mudança aconteceu por meio do projeto de voluntariado da Águas de Teresina, o SaneAção, que levou à comunidade um banheiro para os moradores — algo que, até então, parecia impossível.

A família deixou de usar o espaço improvisado para, pela primeira vez, ter acesso a um banheiro de verdade. A ausência de um cômodo tão básico revela muito mais que a falta de infraestrutura: traz à tona as desigualdades do saneamento, que persistem em pleno século XXI.

Banheiro: o básico que ainda falta

“Saneamento em um mundo em transformação”. A frase, tema do Dia Mundial do Banheiro 2025, celebrado em 19 de novembro, resume uma urgência permanente: mesmo em tempos de mudanças, o básico continua essencial. 

Segundo a Organização das Nações Unidas, 3,4 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso seguro ao saneamento e 354 milhões seguem defecando a céu aberto. O desafio é global, mas no Brasil ele tem rosto, cor e endereço.

A face da desigualdade no saneamento

Um estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base nos dados do CadÚnico de 2024, mostra que mais de 1,25 milhão  de famílias (332 381 urbanas e 927 250 rurais) vivem sem banheiro em casa. Muitas delas também enfrentam a falta de água encanada (17%) e esgoto (22%). 

As moradias inadequadas representam quase 40% dos cadastros no sistema. Corrigir essas carências exigiria um investimento estimado em R$ 274 bilhões.

Por sua vez, um estudo do Instituto Trata Brasil divulgado em 2022, mostra que 4,4 milhões de brasileiros vivem sem banheiro em casa, com 1,3 milhão de domicílios sem esse cômodo. A ausência do banheiro não é apenas estatística, é a face da pobreza extrema e recai, principalmente, sobre as mulheres e a população negra.

Ainda de acordo com o Ipea, 78% das moradias sem saneamento adequado são chefiadas por mulheres. Entre as famílias afetadas, 74,64% são lideradas por pessoas negras, número superior à representatividade desses grupos no próprio CadÚnico. 

“A falta de acesso a direitos básicos incide de formas distintas sobre a população, recaindo com mais intensidade em certos grupos”, explica Renato Balbim, técnico do Ipea.

Regiões Norte e Nordeste: onde o problema é maior

A falta de banheiro afeta especialmente as regiões Norte e Nordeste. No Nordeste, Maranhão, Bahia e Piauí concentram os piores índices, somando 2,68 milhões de pessoas. No Norte, Pará, Amazonas e Acre lideram a ausência de banheiros: 7 em cada 100 moradias não contam com esse recurso.

Soluções que devolvem dignidade

Em meio a esse cenário, iniciativas como o SaneAção são inspiradoras, ao mostrar o valor dos serviços de abastecimento de água e esgoto e como eles impactam positivamente a vida das pessoas.  

A mudança é visível — e sentida. “Foi o primeiro banheiro da comunidade em cinco anos”, relata Ilderlene Silva, líder comunitária do Lindalma Soares. Para ela, ter um banheiro é apenas o começo. “Queremos que a obra da rede de água continue. Água tratada é saúde, é vida”, diz.

Dia Mundial do Banheiro: um alerta global sobre dignidade e direitos básicos

Para combater as estatísticas e mudar a realidade que viola a dignidade humana, foi criado o Dia Mundial do Banheiro (World Toilet Day), que procura dar visibilidade aos problemas relacionados à falta de acesso ao saneamento básico.

Criada em 2001, foi adotada pela ONU em 2013. Este ano, a Organização das Nações Unidas ressalta como essa situação se agrava em um contexto de mudanças climáticas. Sistemas de saneamento podem colapsar, ampliando efeitos adversos nas cidades, na saúde pública e em populações vulneráveis.

O Dia Mundial do Banheiro não é apenas uma data simbólica, é um lembrete de que viver com dignidade ainda é um desafio para milhões. Porque um banheiro — tão simples e essencial — não pode continuar sendo um privilégio.

Texto: Andrea Santa Cruz

Fotos: Arquivo pessoal dos entrevistados e shutterstock.

Fontes: Trata Brasil / Trata Brasil/ ONU / Nota Técnica Ipea / Elias Lacerda/ Word Toilet Day