“O meu pai era pescador, mas ele morreu em agosto de 74. Nós tínhamos canoa, a gente pescava, de madrugada ficava na ponte, todo aquele povo pescando. A gente tomava banho na maré. E aí aquilo foi se acabando, até que hoje nem tem tanto barco.” O relato é de Vânia Maria Cardoso Progênio, 58 anos, nascida e criada na Vila da Barca — uma das maiores comunidades de palafitas da América Latina, localizada às margens da Baía do Guajará, em Belém (PA).
Para ela, as lembranças do tempo em que se banhava na chamada maré lançante — período em que a maré aumenta gradualmente em direção ao seu ponto mais alto — contrastam com os dias atuais, em que um verdadeiro cemitério de barcos tomou o lugar da beleza e daquele movimento do passado. Ninguém mais se banha no rio.

Vânia Maria acredita que fatores como a falta de saneamento básico (este ano a comunidade passou a receber serviços de água e esgoto), mudanças climáticas e ações humanas tiveram forte influência para compor o cenário atual. “Antes não tinha esgoto, a água escorria e isso foi piorando o rio; as pessoas jogavam tudo lá. Aí foi enchendo e, devido à orla, o lixo não passa mais e fica acumulado”, diz.
O futuro sob pressão: mudanças climáticas desafiam o acesso ao saneamento
O impacto da relação de falta de saneamento, ações humanas e mudanças climáticas ao meio ambiente e à vida das pessoas está bem compreendido para Vânia Maria. Quem faz pesquisa sobre os temas não tem a menor dúvida. Estudo publicado recentemente pelo Instituto Trata Brasil, denominado Demanda futura por água em 2050: desafios da eficiência e das mudanças climáticas, aponta que daqui a 25 anos os desequilíbrios entre oferta e demanda de água devem estar acentuados. Isso porque, com a elevação das temperaturas, o consumo de água tende a aumentar. O estudo alerta, inclusive, para o perigo de desabastecimento no país até 2050.
Ainda segundo o Trata Brasil, é preciso entender que os extremos climáticos intensificam os desafios e criam riscos à operação de sistemas de água e esgoto, afetando diretamente a infraestrutura e podendo sobrecarregar os sistemas. Em outro estudo, de 2024, a instituição busca entender as principais ameaças e riscos climáticos tanto para o acesso à água quanto para a coleta e tratamento de esgoto.
Três riscos climáticos podem afetar o funcionamento dos serviços básicos:
- Tempestades — Podem sobrecarregar sistemas de drenagem e tratamento de esgoto. Isso provoca alagamento, rompimento de tubulações e contaminação de fontes de água potável.
- Ondas de calor — Podem impactar volumes e corpos d’água; aumentar contaminação e demanda por energia e por água, pressionando os sistemas.
- Secas — Afetam abastecimento dos mananciais, reduzindo a disponibilidade de água e provocando o racionamento.
Para enfrentar as ameaças climáticas, ações conjuntas:
- Elaborar planos de adaptação das cidades às mudanças climáticas;
- Gestão integrada e sustentável dos recursos hídricos;
- Incentivo a práticas de reuso de água;
- Planejamento operacional que incorpore riscos climáticos;
- Fortalecimento da infraestrutura de captação e tratamento de água e esgoto;
- Modernização dos sistemas de monitoramento e controle de qualidade da água e investimentos em tecnologia;
- Mais investimento no setor de saneamento.
Todo esse entendimento também está em discussão durante a COP30, que ocorre em Belém (PA). As agendas do saneamento e do clima estão intimamente conectadas, tanto que entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU há previsão de assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos (ODS 6). Levar os temas ao debate contribui para preparar as comunidades para os desafios, protegendo o bem-estar e a saúde das pessoas, além do meio ambiente.
Texto e fotos: Chris Reis
Fontes: Saneamento: pauta climática | Trata Brasil | Estudo mudanças climáticas| Jornalismo do centro do mundo | ONU