Novo Marco Legal: o que avançou e o que ainda emperra o Brasil

Para quem tem água tratada na torneira de casa e acesso à coleta e tratamento de esgoto, pode ser difícil imaginar o que é depender de poço para obter água e de fossas sépticas para o descarte dos dejetos. Essa realidade fica só no imaginário da nutricionista Maria Elizabel Duardo Costa, 40 anos, moradora do bairro Aririu, em Palhoça (SC).

Ela tem acesso aos serviços, mas entende que a falta deles ainda é realidade para muita gente — no Brasil, quase 90 milhões de pessoas vivem sem coleta e tratamento de esgoto —, o que gera prejuízos em praticamente todas as áreas: saúde, educação, trabalho e meio ambiente.

A nutricionista entende o saneamento como um serviço ao qual todos devem ter direito. “É importante porque promove a qualidade de vida. O crescimento desordenado das cidades e a falta de investimentos dificultam muito. Esperamos que todas as pessoas tenham acesso”, diz.

Novo marco legal completa cinco anos com metas ambiciosas

Para ampliar o acesso do maior número de pessoas, com mais rapidez, houve uma grande mudança na legislação federal do setor. A cidade catarinense onde vive Maria Elizabel é uma das que vivenciam os efeitos da Lei Federal 14.026/2020, chamada de Novo Marco Legal do Saneamento, que em julho completa cinco anos.

A legislação trouxe metas ambiciosas: universalizar os serviços, garantindo que 99% da população tenha acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto até 2033. Alguns especialistas já sinalizam que não será possível cumprir o prazo.

Na avaliação de Rogério Tavares, vice-presidente de Relações Institucionais da Aegea, é possível que haja extensão do prazo, até porque a própria lei faz esta previsão. “A lei prevê a universalização em 2033, mas tem um artigo em que ela fala que em situações mais difíceis de viabilização, a universalização pode ocorrer até primeiro de janeiro de 2040”.

A previsão consta no § 9º, inciso III do Artigo 11-B. “Quando os estudos para a licitação da prestação regionalizada apontarem para a inviabilidade econômico-financeira da universalização na data referida no caput deste artigo [2033], mesmo após o agrupamento de municípios de diferentes portes, fica permitida a dilação do prazo, desde que não ultrapasse 1º de janeiro de 2040 e haja anuência prévia da agência reguladora, que, em sua análise, deverá observar o princípio da modicidade tarifária”, conforme texto da lei.

Universalização avança com segurança jurídica, competitividade e regionalização

O papel de Coordenação Regulatória da Agência Nacional de Águas é um dos destaques do Novo Marco Legal. Ele é um forte indutor de uma regulação mais homogênea e eficiente, adequada à diversidade das regiões do país. Essas características trazem maior segurança jurídica para  o investimento no setor, o que é essencial à busca da universalização.

Na leitura de Rogério Tavares, esse protagonismo da ANA, trazido pela legislação, dá conforto a quem quer investir em saneamento. “A questão central é ter segurança jurídica para decidir investir no setor. A ANA, nesse papel de formuladora das Normas de Referência Setoriais, é o agente que promove estabilidade regulatória e, com isso, traz maior segurança jurídica para os investidores”, afirma.

A partir da questão regulatória, a competitividade, até então inexistente, a vedação à prestação de serviços por meio de contratos de programa — geralmente firmados sem licitação — abriu mais possibilidades de investimento da iniciativa privada por meio dos leilões, como ocorreu na cidade de Maria Elizabel.

Em 2024, a Aegea Saneamento venceu a concorrência pública para realizar os serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto no município. O contrato foi assinado no mesmo ano e tem prazo de 30 anos.

Outro ponto  também considerado importante para promover as ações rumo à universalização foi a regionalização, quando os municípios se unem formando blocos para que o avanço dos serviços se torne viável. Isso pode ocorrer por meio de adesão, Lei Complementar estadual ou criação de blocos pela própria União – caso isso não ocorresse por iniciativa dos estados. 

“Sem regulação, sem regionalização, sem competitividade, não funcionaria”, resume Rogério Tavares.

Metas claras para os contratos

Outro ponto alterado pelo marco foi a definição de metas claras para os contratos, conferindo mais eficiência à prestação dos serviços. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo Demográfico 2022, revelam que 62,5% da população brasileira vivia em domicílios conectados à rede de esgoto em 2022. Esse índice era de 44,4% em 2000 e subiu para 52,8% em 2010.

Onde as conexões se consolidam, a saúde se instala

A expansão exige investimentos — outro ponto em que o novo marco trouxe mudanças. Em 2024, foram firmados R$ 92,4 bilhões em investimentos por meio de 17 leilões regionais e municipais, o maior valor anual desde a sanção da nova legislação.

A estimativa é que, ainda em 2025, ao menos 25 processos licitatórios sejam realizados, beneficiando 848 municípios. Esses contratos devem movimentar cerca de R$ 69,3 bilhões em investimentos, levando obras de ampliação das redes de água e esgoto a regiões antes esquecidas. Os dados são da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon).

Essa nova realidade promove ajustes importantes no contexto do saneamento básico, contribuindo para reduzir desigualdades no acesso, aumentar a eficiência da gestão e dar mais transparência aos contratos. 

“A lei trouxe a possibilidade de resgatar uma enorme dívida social”, finaliza Rogério Tavares.

Principais alicerces do Novo Marco Legal do Saneamento

  • Definição de metas para a universalização dos serviços;
  • Aumento da concorrência com vedação a novos contratos de programa;
  • Maior segurança jurídica para desestatizações;
  • Estímulo à prestação regionalizada dos serviços;
  • Papel de destaque da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) na regulação do setor.

Resumo das metas e diretrizes da Lei nº 14.026/2020

  • Até 2033, 99% da população deve ter acesso à água potável e 90% à coleta e tratamento de esgoto;
  • Licitação obrigatória para concessões de serviços;
  • Estímulo às Parcerias Público-Privadas (PPPs);
  • Regionalização da gestão, facilitando a operação em localidades menores;
  • ANA passa a estabelecer normas de referência, padronizando exigências e aprimorando a fiscalização;
  • Regionalização dos serviços de manejo de resíduos sólidos e incentivo à formação de consórcios.

Quer entender mais sobre a legislação e a evolução do setor do saneamento? Clique aqui e veja a linha do tempo:
https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2020/12/28/a-evolucao-das-politicas-de-saneamento-basico

Texto: Chris Reis
Foto: Shutterstock

📌 Links 

https://abconsindcon.com.br/privatizacao-dos-servicos-de-agua-e-esgoto-vai-alcancar-metade-do-pais/
https://abconsindcon.com.br/saneamento-tem-investimento-recorde-de-r-29-bilhoes-em-2023/
https://abconsindcon.com.br/desafio-do-setor-de-saneamento-e-levantar-r-900-bi-ate-2033/
https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/saneamento-basico/saneamento-basico-no-brasil/panorama-do-saneamento-no-brasil-1
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39237-censo-2022-rede-de-esgoto-alcanca-62-5-da-populacao-mas-desigualdades-regionais-e-por-cor-e-raca-persistem
https://www.abiclor.com.br/marco-legal-do-saneamento-basico-e-essencial-para-o-desenvolvimento-do-brasil/
https://exame.com/brasil/se-o-marco-do-saneamento-funcionar-bem-o-governo-tira-vantagem-diz-gesner-oliveira/
https://ceri.fgv.br/sites/default/files/publicacoes/2019-12/Contratos_de_Programa_2.pdf
https://aguaspalhoca.com.br/quem-somos/
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm
https://www.aegea.com.br/2024/08/15/aegea-vence-licitacao-para-prestacao-de-servico-de-saneamento-basico-no-municipio-de-palhoca-sc/#:~:text=Est%C3%A3o%20previstos%20cerca%20de%20R$%201%2C5%20bilh%C3%A3o,popula%C3%A7%C3%A3o%20de%20mais%20de%20220%20mil%20habitantes.&text=A%20Aegea%20parabeniza%20a%20Prefeitura%20de%20Palho%C3%A7a,o%20poder%20p%C3%BAblico%20e%20o%20setor%20privado