Imagine uma piscina olímpica. Para ficar mais fácil, ela tem 50 metros de comprimento – meia quadra da maioria das cidades brasileiras –, por 25 metros de largura e dois metros de profundidade. Nela cabem 2.500.000 litros de água. Agora, multiplique por 6 mil. Cheias, abastecidas com água tratada, pronta para matar a sede, cozinhar, lavar roupa, tomar banho, regar planta, fazer a vida acontecer. Agora imagine tudo isso escorrendo pelo ralo — todos os dias.
Essa é a realidade do Brasil.
Segundo um novo estudo sobre perdas de água do Trata Brasil (divulgado em 2025 com dados do SINISA de 2023), o país desperdiça diariamente o equivalente a 6.346 piscinas olímpicas de água potável — mais de 5,8 bilhões de metros cúbicos por ano. É água que já foi captada, tratada, paga com recursos públicos ou tarifas, mas nunca chega à torneira do cidadão.
Enquanto isso, cerca de 34 milhões de brasileiros seguem sem acesso à água tratada. É como se um país inteiro estivesse à margem da dignidade, enquanto outro assiste ao vazamento invisível de um recurso essencial à vida.
Vaza aqui, falta ali
O problema tem nome e sobrenome: perda de água na distribuição. Isso acontece quando a água tratada se perde em vazamentos subterrâneos, tubulações antigas, ligações clandestinas ou erros de medição. Quase metade da água do Brasil escorre assim: 40,31% de toda água tratada foi desperdiçada em 2023.
E não estamos falando de pouca coisa. Esse desperdício seria suficiente para abastecer:
- 50 milhões de brasileiros por um ano inteiro;
- Toda a população da Espanha;
- Ou ainda os 17,2 milhões de pessoas que vivem em comunidades vulneráveis no Brasil por quase dois anos.
Ou seja: perde-se o suficiente para matar a sede de quem tem sede.
Caixas d’água que viram fantasmas
Para deixar ainda mais palpável, o estudo fez outra comparação: o volume perdido equivale a 21 milhões de caixas d’água de 750 litros desperdiçadas por dia. Cada uma dessas caixas seria capaz de atender uma família de 5 pessoas por um dia inteiro. E elas simplesmente… evaporam, sem chegar a quem mais precisa.
Desigualdades que escorrem pelo ralo
As regiões Norte e Nordeste concentram os maiores índices de perdas: quase metade da água tratada some antes de chegar ao consumidor — com destaque para estados como Alagoas (69,86%), Roraima (62,51%) e Acre (62,25%).
A ironia cruel? São justamente as regiões com maior número de famílias sem acesso regular à água e também com menor infraestrutura, menos investimentos e maior vulnerabilidade às mudanças climáticas.
Crise climática + ineficiência = bomba-relógio
A escassez de água já é um problema global. No Brasil, as secas se tornam mais intensas, os rios perdem volume, o clima muda e o acesso à água potável se torna ainda mais difícil. Num cenário assim, cada gota conta — mas aqui, quase metade é desperdiçada.
E mais: para produzir essa água que se perde, são gastos milhões com produtos químicos, energia elétrica para bombear, manutenção, obras emergenciais. Um sistema caro, ineficiente e que deixa milhões desassistidos.
O estudo aponta que, se o Brasil reduzisse suas perdas para 25%, como prevê a Portaria 490/2021 do Ministério das Cidades, seria possível economizar 1,9 bilhão de m³ de água por ano — o suficiente para abastecer 31 milhões de pessoas.
Dois Brasis: um que desperdiça, outro que vive com sede
Enquanto municípios como Suzano (SP), Santos (SP), Teresina (PI) e Goiânia (GO) já conseguiram controlar as perdas dentro da meta, outros, como Maceió, Belém e Rio Branco, ainda apresentam índices alarmantes, com mais de 60% de perdas.
É um retrato de um país dividido, em que a água é desperdiçada em volumes gigantescos em alguns lugares e racionada à base de baldes e caminhões-pipa em outros.
O Brasil precisa parar de desperdiçar água como se ela fosse infinita. Porque ela não é. E porque tem gente demais esperando por ela — com sede de água e de justiça.
Para saber mais
“Estudo de perdas de água 2025 (SINISA, 2023): desafios na eficiência do saneamento básico no Brasil”, no site do Trata Brasil.
Texto: Rosiney Bigattão